Guilherme Talerman Pereira (24) é formado em Direito pela Universidade de São Paulo e cursa Filosofia também na mesma instituição. Deseja mudar de carreira (se uma mudança antes do início de uma carreira significa realmente uma mudança de carreira em si) e ser professor. Seus escritos são abertos à crítica, mas serão defendidos ferrenhamente. Escreve no blog ContraTalerman. É colaborador-fixo de literatura na Aboio.
Em março deste terrível ano, um amigo meu da faculdade (espero que posso chamá-lo de amigo, apesar de acreditar nunca termos realmente olhado um nos olhos do outro) recomendou em seu perfil do Instagram o romance O retorno, da portuguesa Dulce Maria Cardoso, publicado pela editora Tinta da China Brasil em 2011. A autora ganhou diversos prêmios e a obra foi considerada o livro do ano em Portugal. Eu, de pronto, fiquei interessado pelo tema, que já revelo a vocês.
Em agosto, esse meu amigo publicou sua resenha-crítica ao livro, avaliando-a com a nota 2.0/5.0, criticando tanto escrita quanto escolhas narrativas da autora. Dado que esse amigo é um ávido leitor de grandes obras, fiquei com um pé atrás, mas, mesmo assim, decidi adquiri-la e lê-la. Hesitei, admito, sempre esperando pelo pior (seja lá o que o seja isso), porém, no caminhar da leitura, me surpreendi muito positivamente com o trabalho de Dulce.
Este texto não é, como pode aparentar por esses parágrafos iniciais, uma crítica ao meu amigo: cada um lê um livro de forma diferente porque vive e viveu de forma diferente, e o gosto, como algo essencialmente público e compartilhado – pois necessita da comparação para sequer existir -, varia em conformidade com cada história e formação. E é justamente por isso que enrolo vocês nesse começo de texto: recomendações literárias são (sempre) bem-vindas, mas devem ser consideradas (sempre) apenas como uma leitura pessoal de outro que será (sempre) diferente de você – e é aqui que nos reconhecemos como indivíduos.O retorno narra a vivência de um dos lados de um importante momento histórico do Império Português: a emancipação das colônias ultramarinas portuguesas, em decorrência da Revolução dos Cravos. Acompanhamos, no plano geral, os efeitos do processo de descolonização e independência da Angola, em 1975, que conta com uma intensa – e forçosamente apressada – onda migratória dos portugueses que habitavam esse e os demais territórios coloniais. Esses quase 600 mil portugueses que retornaram à metrópole foram chamados de “retornados” e sofreram, nessa “volta”, preconceito dos portugueses metropolitanos, bem como tiveram de lidar com desamparo governamental que, somado à falta de renda e patrimônio, deixaram-lhes sozinhos, a se virarem por si sós numa terra que, de verdade – verdade mesmo -, nunca havia sido seu lar.
Acompanhamos a família de Rui, composta por sua mãe, irmã e pai, em seu processo de fuga de Luanda, entre os tiros dos “pretos” e o abandono da casa e pertences familiares, entre as expectativas e idealizações da metrópole, com suas “cerejas grandes e luzidias que as raparigas põem nas orelhas a fazer de brincos. Raparigas bonitas como só as da metrópole podem ser.” [p. 7]; o pai, preso um dia antes da partida, que permanece vivo e presente na mente de Rui e sua família, estabelecidos num hotel de luxo ao chegarem em Portugal, bancados pelo Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais (IARN).
Foi já durante a leitura do primeiro capítulo que uma segunda hesitação tomou, de súbito, conta de mim e transmutou-se numa precipitada assunção: eu não conseguiria, de forma alguma, sentir piedade ou dó de um português colonizador. E esse pensamento permaneceu comigo, segurando-me pela gola.
Essa proto-aversão aos portugueses – e falo aqui de modo mais franco possível – nunca havia sequer passado em minha mente, a não ser rindo das discussões no Twitter entre eles e brasileiros sobre roubo de riquezas e coisas do tipo; essa aversão – que, conversando com um outro amigo, revelou-se mais presente do que eu imaginava em meu círculo social – jamais existiu em meu âmago e, ao decorrer da leitura da obra, desapareceu por completo (e duvido que um dia ainda volte a me visitar).
Antes de explicar tudo isso, e em consonância com o que acima expressei por cada leitura ser, necessariamente, “pessoal” – o que pode parecer para alguns, se levadas essas palavras ao pé da letra, uma obviedade -, preciso fazer algumas considerações sobre uma das características gerais da forma de compreensão do sensível: a denominada “clareza extensiva”.
Goethe, talvez o maior poeta da humanidade, encontrou nas canções populares, as Lieder, um ponto de partida para sua produção poética, como a seguinte:
CRAVO
O cravo brotou no prado,
desconhecido e corado,
um cravo pequeno e brando.
Mas uma jovem pastora
passava ali naquela hora
sorrindo e cantarolando…
“Fosse eu o cravo mais lindo
do mundo!”, disse sorrindo,
“…só por um momento, ser
colhido pela mais bela,
e premido ao seio dela,
eu poderia morrer.”
Mas a pastora indecisa,
Ao não notar onde pisa,
Calcou o cravo amador.
E esmaecendo, ele sorria:
posso morrer com alegria
– morro aos pés do meu amor!1
Essa, como outras canções do jovem Goethe, sempre muito simples, breves, momentâneas e de temática popular, ilumina bem a questão. Elas claramente são, como toda poesia, imagens de um sentimento, um instantâneo de um momento da existência, pleno de significado. Quem as lê – e, lembrando, ler de verdade é sempre ler com gosto e afinco -, eventualmente identifica alguma época ou instante de sua vida, uma lembrança profundamente escondida. Isso porque o verdadeiro artista consegue, de alguma forma, fazer de um momento muitos momentos, potencializando o instante de modo que o espectador reconheça na obra de arte experiências pessoais.
Esse é um dos efeitos da noção de clareza extensiva do conhecimento sensível, formulado por Alexander Gottlieb Baumgarten (1714-1762), filósofo alemão que, na primeira metade do século XVIII, trouxe a questão do belo e da arte ao âmago da discussão filosófica, fundando a disciplina da Estética, conforme a história da filosofia consolidou tal processo:
Se uma representação A representar um número maior de coisas que outras representações B, C, D, etc., mas se apesar disso as representações que ela contém forem todas confusas, nesse caso A é mais clara que as outras sob o ponto de vista extensivo. Tivemos de acrescentar essa restrição para distinguir estes graus extensivos da clareza daqueles outros graus muito conhecidos que, pela distinção das marcas da percepção, levam à profundeza do conhecimento e acarretam a uma representação mais clara que a outra, sob o ponto de vista intensivo. [Meditações, § 16, tradução de Oliver Tolle]
Ou seja, esse tipo de clareza faz parte de uma de duas faculdades cognitivas distintas, uma vez que o conhecimento racional e investigativo das coisas acarreta uma distinção entre as próprias coisas e/ou partes das coisas, o conhecimento sensível trabalha com os objetos antes dessa distinção, na confusão do sensorial, e
[A]ssume que a clareza, que quando tornada distinta é ressaltada em apenas um de seus aspectos, também pode ser avaliada justamente pela amplitude com que se apropria de um objeto. (…) também a apercepção que compreende, pela sensibilidade, o maior número de aspectos, ainda que confusos, de um objeto é um conhecimento.2
Nessa toada – e aqui, deixo claro, muitos passos lógicos transformaram-se em grandes saltos lógicos por mim:
[U]ma determinada atenção não é dotada de clareza extensiva apenas mediante o foco instintivo com que suscita uma determinada ideia. A sua clareza é maior se forem ativados os nexos entre essa atenção presente e percepções passadas semelhantes.3
Essa maior clareza é alcançada, portanto, a partir da relação entre o obscuro (coisas singulares existentes e percebidas pelos sentidos) e o claro (o que já foi sentido, nexos universais), de modo não inteiramente consciente. Assim – e aqui termino as citações mais complicadas – “A expressão do conhecimento sensível ocorre, portanto, segundo um vínculo que envolve a totalidade do indivíduo.”4
Esse processo de conhecimento das coisas sensíveis que se configura, em última instância, a um verdadeiro processo de reconhecimento, pode fazer e o faz nos mais das vezes um símbolo da cultura popular:
É a própria essência da cultura popular que os intensos sentimentos despertados por uma canção ou filme sejam experimentados por muitas outras pessoas, quase ao mesmo tempo. Quando alguém diz “no verão em que nos apaixonamos todo mundo estava tocando a nossa música”, está descrevendo uma das experiências pop essenciais – o sentido de que o indivíduo está conectado com o grupo.5
A grande arte fora do popular, porém, tem e sempre teve diversa pretensão quanto à relação com o seu público: uma relação particular, única, “uma relação que é íntima, talvez até secreta.”6 E é aí que a questão da clareza extensiva entra em jogo.
Depois de me deparar com essa aversão à piedade ao português – que eu não aceitava sentir, ainda sem razões também – logo me veio à mente um curto episódio de minha vida universitária do qual sempre tive vergonha: no processo seletivo de um grupo de estudos, nas entrevistas em grupo, além da ridícula soberba que acompanha jovens universitários, palestrei sobre algum assunto que já não me lembro, culpando o sistema capitalista em termos abstratos, quando fui questionado por um professor sobre os culpados do funcionamento dessa máquina de moer gente. Respondi, rindo como um dos pretendentes de Penélope na Odisseia, que achar essas pessoas era o objetivo do grupo.
Que resposta ingênua – e é claro que não fui aceito no grupo de estudos, com razão. Até esse momento eu não havia lido, por exemplo, a reinterpretação da teoria crítica marxista por Moishe Postone e sua conceituação do capitalismo “em termos de uma forma historicamente específica de interdependência social com um caráter impessoal e aparentemente objetivo”.7 O autor complementa:
Essa forma de interdependência se realiza por intermédio de relações sociais constituídas por formas determinadas de prática social que, não obstante, se tornam quase independentes das pessoas engajadas nessas práticas. O resultado é uma forma nova e crescentemente abstrata de dominação, que sujeita as pessoas a imperativos e coerções estruturais impessoais que não podem ser adequadamente compreendidos em termos de dominação concreta (por exemplo, dominação pessoal ou de grupo).8
Essa máquina chamada “capitalismo” movimenta-se (mas nem sempre assim se movimentou) através das pessoas não enquanto pessoas e quase apesar delas próprias: não há Guilherme, Maria, Rui, você; há um número e uma função a ser cumprida; é a era da fungibilidade pessoal. O resto é floreio.
A partir do momento que me lembrei disso, dessa exigência impessoal quando tratamos o mundo como algo abstrato, O retorno fluiu e pude realmente ouvir Dulce Maria Cardoso, ela mesma uma retornada. Pude ouvir Rui, o protagonista, em alto e bom som em suas explosões de pensamento que Dulce transformou em algo que chamamos simplesmente de “capítulos”.
Pude, agora, ouvir o nome das personagens: Milucha, a irmã, que me lembrou de meu amigo Pedro por sempre se apaixonar, não importando a situação; Pirata, a cadela que recebe a família aos pulos, “como fazem todos os cães” [p. 14], como faz a minha Tchica; Mário, o pai desaparecido, empreendedor, faltante, o pai que parece meu pai; Glória, atribulada por uma doença mental, os “demónios”, inominável e indiscutida pelos seus pares.
A escrita da obra, fluida como fluxos de um pensar, me lembrou Saramago, com suas falas entre vírgulas, oralizantes, voláteis. A narrativa, um eterno espiral triplo entre o lá (metrópole, depois Angola) e o cá (Angola, depois metrópole), entre o passado, presente e o futuro, entre a expectativa e a realidade, entre mim e Rui.
Nela, temos diversas figuras que funcionam como metrônomos entre essas idas e vindas, como a linda utilização da onomatopeia “tlim tlim” da página 16, ou o curto capítulo no aeroporto nas páginas 59-63 e sua construção fantástica de recapitulação dos eventos da prisão do pai através de pequenas orações ao final de cada parágrafo, ou, por fim, a falta de ar que nos é causada no capítulo anterior, quando o pai está prestes a ser levado, pelos parágrafos que se alongam por vírgulas em demasia e pontos em escassez.
O próprio Rui, ao final do livro, em sua despedida, discute a questão da culpa, e chega no meio caminho da resposta que cheguei:
Mas a mãe já não fala tanto em termos perdido tudo, agora está sempre a falar do empréstimo do IARN, como é que vamos conseguir pagar tanto dinheiro, a mãe continua a fazer muitas vezes a mesma pergunta, parece que os demónios deixaram de rondá-la mas as cismas continuam, a culpa das cismas da mãe não é de África nem da metrópole, a culpa das cismas da mãe não é de nenhuma terra nem dos demónios nem de ninguém, custa a acreditar que haja coisas que existem sem culpados mas é verdade. [grifo meu, p. 249-250]
Quase, Rui, quase. Você também não deve viver com vergonha, porque, como você também mesmo disse, “deve ser chato viver com vergonha de uma coisa que não se pode mudar.” [p. 244] Você é apenas uma criança. Eu até diria que poderíamos ser amigos, Rui, mas há muita coisa que não gosto em você, apesar dos pesares: seu machismo, racismo, homofobia contra seu tio (mesmo que, ao final, você tenha feito uma bela reflexão sobre a mudança de seu olhar). Você é filho do seu tempo, e eu do meu. Porém, espero te encontrar novamente mais maduro, mais consciente aos seus arredores. Ainda me sinto mal pelo que fazia com Hilário, amigo de Angola, mesmo você nos brindando com uma descrição perfeita dos efeitos do conceito “ideologia”:
Eu também devia saber o que acontece aos brancos que desaparecem. E aos que são presos. E no entanto até os filhos da D. Eugénia repetiam, o meu pai foi comprar farinha de mandioca e nunca mais voltou. Eu, o Gegé e o Lee às vezes dizíamos ao Hilário, que era da nossa turma, os pretos apanharam o teu pai e mataram-no. Dizíamos por maldade, para o ver engolir em seco, o teu pai nunca mais volta. E no entanto o Hilário nunca deixava de andar atrás de nós. Tenho-me lembrado muitas vezes do Hilário, do que lhe via nos olhos quando lhe dizíamos, o teu pai nunca mais volta. Acho que só agora percebi. Como o tio vê não era só da sua tristeza que não me apercebia. E nem era por o tempo passar depressa aí que eu não percebia a maior parte das coisas. Não percebia porque não queria. Ou talvez não fosse capaz mesmo que quisesse. [grifo meu. p. 137-138]
Ainda assim, Rui viveu e, assim como seu pai para ele, aparece, às vezes, para mim, deixou sua marca, como pretendia ao final da obra. É deslumbrante observar alguém vivo, eu acho, em sua complexidade irrotulável mas (sempre) passível de crítica.
O retorno me fez conhecer as personagens mais reais que já conheci em minhas leituras, pois lutei internamente pela liberdade delas pela primeira vez. Assim, tomo a liberdade de representar os brasileiros que ainda têm ou ainda não sabem que podem ter certa aversão a personagens portugueses e/ou escritores portugueses por conta de nosso histórico colonial e dizer: nós estamos livres, camaradas; aproveitemos as vozes do mundo com ternura, porém sem perder a dureza na crítica às engrenagens que nos separam – e que, para medo de muitos, têm (sim!) um nome.
[1] Título original “Das Veilchen”, de 1774, traduzido por Wagner Schadeck para o Jornal Opção.
[2] Tolle, Oliver, Luz Estética: A ciência do sensível de Baumgarten entre a arte e a iluminação.
[3] Ibid., p. 58
[4] Ibid.
[5] Perl, Jed, Estética laissez-faire, em Serrote n. 16, Instituto Moreira Salles, p. 66.
[6] Ibid., p. 68
[7] Postone, Moishe, Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx, tradução Amilton Reis, Paulo Cézar Castanheira, 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2014, p.18.
[8] Postone, Moishe, Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx, tradução Amilton Reis, Paulo Cézar Castanheira, 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2014, p.18.
Foto de Maria Cecília Chaves Machado.